domingo, 1 de agosto de 2010

Chefe chegou: acção! - artigo de Luis Calisto no DNMadeira

Queixar-se de censura resulta. só um protagonista já se impingiu 96 mil vezes nos media

Com a devida vénia ao Diário de Notícias da Madeira

"A RTP dita 'da Madeira' censurou a minha intervenção, ao contrário das [intervenções] dos outros dois oradores." Eis um expressivo traço caricatural do jornalismo 'à Madeira nova' repercutido num protesto corriqueiro do chefe do governo. O chefe, nos primórdios, certamente admitia que ninguém é a personificação da notícia, sabia que notícia é notícia, tem definição. Mas, na fermentação do regime absolutista, aferrou-se à ideia de que não pode haver na Região acontecimentos mais importantes do que o Alberto João ir à serra visitar o jamboree ou assistir ao te-deum na Sé.


Ninguém compra um jornal ou liga a TV à procura de enchidos à medida do exibicionismo de um chefe. Mas o homem tanto se enfronhou na batalha para ser visto, achando-se a 'notícia em carne e osso', que não só impôs tal teoria como acabou por se auto-convencer de que é crime desviar os holofotes da sua real figura. Daí perguntar à estação por que diabo falhou o 'Serviço Público' de meter no telejornal uma discursata sua, de todo dispensável à reportagem.

A queixa surgiu esta semana no JM, em mais um hilariante 'post scriptum'. Chefe das Angústias referia-se à cerimónia da entrega de três casas a desalojados do 20 de Fevereiro. A reportagem deu antena a Luís Filipe Vieira, porque as casas foram oferecidas pela Fundação Benfica, e a Ismael Fernandes, presidente da martirizada Ribeira Brava. Tinha o chefe algo a ver com esta diligência? Ele acha que sim, porque... ele é a 'notícia'. E que terá dito de tão decisivo na cerimónia para se queixar de "censura"? Classificou a atitude do Benfica de "exemplo cívico" e "exemplo bonito". Foi essa bombástica tautologia que a TV 'censurou'. Sejamos práticos: haveria ridículo 'post scriptum' se a reportagem mostrasse sua excelência a perorar e omitisse Filipe Vieira e Ismael?

Tem havido tentativas, geralmente mal sucedidas, para um regresso aos conceitos genuínos do jornalismo. Pondo-se em causa, por exemplo, o teor noticioso das inaugurações. Em definição linear, notícia é o que permite saber o que se desconhecia. Quem não sabe que é o chefe a presidir às eleiçoeiras inaugurações? Na verdade, depois de '365 dias vezes 32 anos' a inaugurar, notícia mesmo seria uma inauguração sem o chefe. Mostrar a importância de uma nova estrada para a população da Achada do Norte é importante. Ter sido o chefe a inaugurá-la não interessa patavina. Quer promoção? Pague. Bem, se pagar será com dinheiro dos outros...

A braços com essas não-notícias dos actos oficiais, os jornalistas, antevendo o desespero para produzir a peça, 'pedem' ao chefe do governo comentários sobre temas às vezes estapafúrdios, desde o bebé de Ronaldo à mosca da Patagónia - para terem algo de diferente. Cada qual pede uma opinião e depois... a televisão debate-se com o drama de meter o chefe três, quatro e cinco vezes no mesmo telejornal. Não há alinhamento que resista. É que, se não, ribombam os temidos telefonemas para a RTP e o 'post scriptum' no JM. Assim viceja o crónico 'telejardim', ramalhete de aparvalhantes 'posições' do chefe de que os jornais escritos mais depressa conseguem escapar, em parte. O chefe ofusca tudo. Desde que se diga que o Alberto João visitou o jamboree, que elogiou e foi elogiado, pespegando as suas diatribes largadas à margem, missão cumprida. Mesmo que o consumidor de informação fique sem perceber os propósitos e os objectivos do jamboree, as acções a correr no terreno, quem é que faz o jamboree - ou, mais grave, o que é sequer um jamboree.

O sistema está enraizado. A RTP, responsável pelo Serviço Público de TV, está obrigada a observar o 'pluralismo, o rigor, a isenção da informação, respeitando escrupulosamente os princípios da liberdade e da independência perante o poder político e o poder económico, designadamente face ao governo'. Apesar de não ser iliterato, chefe das Angústias infere que estas normas significam o seguinte: se lhe cortarem o pio num telejornal ou se puserem 'comunas' a falar, é caso de saneamento.

Chefe decide, está decidido. Entende que, como ganha eleições, pode ser 'juiz em causa própria', pode ser 'árbitro e jogador ao mesmo tempo'.

Fazendo contas tímidas, o grande líder deve ter, nesta eternidade jardineirista, aparecido em telejornais, noticiários de rádio e páginas de jornais para aí umas 96 mil vezes. Perante massacre de tal jaez, a oposição tende a desaparecer. Daí a solução de, em rodapé, a TV passar uns segundos de cada partido por dia, para tentar aplacar a desproporção. Ou seja, há um tempo de antena obrigatório a abrir o noticiário, com as inaugurações e as sentenças do chefe. E outro tempo de antena à beira do intervalo, com as acções que os partidos da oposição fazem para evitar a sua desintegração. Isto passa-se hoje na RTP como se passou com as direcções anteriores - conforme testemunho aqui presente. Ora, tempo de antena não faz parte dos noticiários. Os políticos criativos sabem como programar diligências com notícia.

Que interessa a quem está no poder? Ocupar os espíritos. Enquanto o governo discute os jornais, os jornais não discutem o governo. A Madeira é a única terra do mundo onde é a Política a criticar a Crítica, em lugar de ser a Crítica a criticar a Política. Só aqui, TV e jornais são notícia. Diária. Há 30 anos. E enquanto o asfixiante sistema boicota a missão das redacções, o povo não pensa no futuro de uma Região metida no beco sem saída onde se encontra. Na alaranjada arquiconfraria, a proliferação de adjuntos e assessores deveria, ao menos, libertar o chefe dos seus ímpetos exibicionistas. Um presidente não devia fazer de 'emplastro', a impingir-se às câmaras de TV o tempo todo. Quinta-feira, chefe foi à bola e apareceu em planos fixos, 'zoom in' e 'zoom out' mais vezes do que os marcadores de oito golos, além das citações e alusões nos comentários. Desta vez não haverá 'post scriptum'.

Resta esperar que, enquanto procura o regresso à sanidade, a Madeira não seja atirada para o abismo por esta desgovernação arrogante e jactante, suicida e bancarroteira, desprogramada, irresponsável, desregrada, individualista - dramaticamente perigosa. Quadros de reconhecida sensatez, mesmo da área maioritária, confessam temer que o colapso esteja para muito breve.

1 comentário:

Manuela_a_Lusa disse...

Ser Jornalista é saber persuadir, seduzir. É hipnotizar informando e informar hipnotizando. É não ter medo de nada nem de ninguém. É aventurar-se no desconhecido, sem saber direito que caminho irá te levar. É desafiar o destino, zombar dos paradigmas e questionar os dogmas. É confiar desconfiando, é ter um pé sempre atrás e a pulga atrás da orelha. É abrir caminho sem pedir permissão, é desbravar mares nunca antes navegado. É nunca esmorecer diante do primeiro não. Nem do segundo, nem do terceiro... nem de nenhum. É saber a hora certa de abrir a boca, e também a hora de ficar calado. É ter o dom da palavra e o dom do silêncio. É procurar onde ninguém pensou, é pensar no que ninguém procurou. É transformar uma simples caneta em uma arma letal. Ser jornalista não é desconhecer o perigo; é fazer dele um componente a mais para alcançar o objetivo. É estar no Quarto Poder, sabendo que ele pode ser mais importante do que todos os outros três juntos.

Ser jornalista é enfrentar reis, papas, presidentes, líderes, guerrilheiros, terroristas, e até outros jornalistas. É não baixar a cabeça para cara feia, dedo em riste, ameaça de morte. Aliás, ignorar o perigo de morte é a primeira coisa que um jornalista tem que fazer. É um risco iminente, que pode surgir em infinitas situações. É o despertar do ódio e da compaixão. É incendiar uma sociedade inteira, um planeta inteiro. Jornalismo é profissão perigo. É coisa de doido, de maluco beleza. É olhar para a linha tênue entre o bom senso e a loucura e ultrapassar os limites sorrindo, sem pestanejar. É saber que entre um furo e outro de reportagem haverá muitas coisas no caminho. Quanto mais chato melhor o jornalista.

Ser jornalista é ser meio metido a besta mesmo. É ignorar solenemente todo e qualquer escrúpulo. É desnudar-se de pudores. Ética? Sempre, desde que não atrapalhe. A única coisa realmente importante é manter a dignidade. É ser petulante, é ser agressivo. É fazer das tripas coração pra conseguir uma mísera declaraçãozinha. É apurar, pesquisar, confrontar, cruzar dados. É perseguir as respostas implacavelmente. É lidar com pressão, pressão de todos os lados. É saber que o inimigo de hoje pode ser o aliado de amanhã. E a recíproca é verdadeira. É deixar sentimentos de lado, botar o cérebro na frente do coração. É ser frio, calculista e de preferência kamikaze. É matar um leão por dia, e ainda sair ileso. É ter o sexto sentido mais apurado do que os outros, e saber que é ele quem vai te tirar das enrascadas. Ou te colocar nelas.

Ser jornalista é ser meio ator, meio médico, meio advogado, meio atleta, meio tudo. É até meio jornaleiro, às vezes. Mas, acima de tudo, é orgulhar-se da profissão e saber que, de uma forma ou de outra, todo mundo também gostaria de ser um pouquinho jornalista. Parabéns a Luís Calisto

 
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