domingo, 9 de agosto de 2009
RAUL SOLNADO
Republicação aqui de um texto transcrito no Fumaças em Novembro de 2004:
Uma interessantíssima entrevista a Raul Solnado, no site da Sociedade Portuguesa de Autores:
(RAUL SOLNADO
Actor imenso, homem solidário)
É lisboeta e tem 74 anos. Bem vividos. Mas o seu sorriso bom e malandro continua a parecer o de uma criança traquinas de quem é impossível não gostar. O seu segredo - se segredo tem - explica-o ele nesta entrevista: o seu projecto de vida nunca foi a riqueza, mas a felicidade.
Solnado começou a trabalhar em 1947 no teatro amador, na Guilherme Cossul - uma colectividade que nunca (o) esqueceu. Tinha 18 anos. Em 1952 estreou-se "profissionalmente" num show no Máxime e a partir daí não mais parou: opereta, revista, teatro clássico, cinema, televisão. Fazendo rir e pensar. Dono e senhor de uma popularidadade incrível.
O grande salto deu-se na década de 60: o monólogo "A Guerra de 1908", estreado em Outubro de 61, cedo passou a ser a guerra do Solnado e marcou-o definitivamente. Até aos dias de hoje. Foi um golpe de génio e uma batalha gloriosamente ganha na guerra contra a ditadura.
Oito anos mais tarde, em 69, com Carlos Cruz e Fialho Gouveia, averbou outra vitória retumbante: apresentou na RTP um programa inovador que se tornou um marco na programação televisiva : "Zip-Zip". E nessa sua década de ouro fez o que, até hoje, nenhum actor português fez: criou de raiz e dirigiu (de 64 a 70) um teatro - o Villaret.
A lista de trabalhos assinados por Solnado é fantasticamente longa. No seu Parque Mayer fez um mar de revistas, muitas das quais ficaram para sempre no imaginário português. Na televisão, voltou a fazer das suas nos anos 70: o concurso "A Visita da Cornélia" permanece uma referência.
Mas se a década de 60 foi de ouro, a de 80 foi de diamante. O seu melhor trabalho cinematográfico é de dessa época: fez um fantástico papel dramático no filme "A Balada da Praia dos Cães", de Fonseca e Costa, baseado no livro de José Cardoso Pires; foi actor convidado do Teatro Nacional D. Maria II, como protagonista da peça "O Fidalgo Aprendiz", de D. Manuel de Melo; foi actor convidado do Teatro Nacional de S. Carlos, na personagem Frosch da opereta "O Morcego", de Strauss; fez "O Avarento", de Molière, no Teatro Cinearte, encenado por Helder Costa; e ao lado de Eunice Muñoz fez a telenovela "A Banqueira do Povo".
Em 2001 voltou aos palcos do teatro com um papel de grande relevo na peça de Freitas do Amaral "O Magnífico Reitor". E tendo sido sua a ideia de criar a magnífica "Casa do Artista" - concretizada fundamentalmente por Armando Cortez e Manuela Maria - Raul Solnado, sempre solidário, é o hoje o seu magnífico Presidente.
Ribeiro Cardoso
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As gargalhadas que ganharam a guerra
Raul Solnado é um actor de mil faces mas foi com as gargalhadas que se impôs como uma figura mítica do espectáculo. E quando a guerra colonial era sagrada e indiscutível, ele pôs Portugal a rir-se de uma guerra sem sentido, uma rábula que foi o seu maior êxito de sempre. Ouvide agora senhores, a sua estória de pasmar!
Autores - Costuma dizer que um cómico tem muitos inimigos. Quem são os seus inimigos?
Raul Solnado - O actor cómico é um interventor no plano social, político e até na vida das pessoas que critica, por isso não pode ter a unanimidade universal. O Chaplin tinha imensos inimigos e esses declaravam-se a cada passo. Os meus inimigos não se declaram, mas sei que os tenho, embora não se manifestem.
A - Para os cómicos não há limites?
RS - Para mim tudo é risível mas imponho-me limites. Despejo a minha fúria sobre o pensamento monolítico, critico o que os políticos dizem e fazem, ridicularizo os tiques da sociedade, contexto as injustiças. Só poupo a democracia, é proibido atentar contra o regime democrático. Contra o Presidente da República, também não. Mal vão as coisas quando ele é criticável.
A - Foi por isso que em plena guerra colonial pôs Portugal a rir à gargalhada com a sua versão da guerra?
RS - Aquela rábula tem um início anterior à guerra. Eu fui a Madrid e vi o Miguel Gila representar o texto. Fiquei logo apaixonado pela rábula porque o non sense é o tipo de humor que mais me toca. Comprei o disco, traduzi o texto mas guardei-o, não por temer a censura mas porque tinha dúvidas que as pessoas gostassem daquilo.
A - E quando é que a sua guerra saiu da gaveta?
RS - Foi já no início da guerra em Angola. Eu fui com o Humberto Madeira -um cómico fabuloso - à quermesse do Nacional da Madeira, na Quinta da Vigia, um sítio lindíssimo onde agora está instalado o Governo Regional. Num mês fizemos 45 espectáculos e lá para o fim sentimos que era preciso refrescar o repertório. Disse ao Humberto Madeira que gostava de fazer a guerra, talvez as pessoas gostassem. Ele apoiou-me e avancei. Nessa noite o público riu-se tanto que pediu bis. Foi ali que começou o sucesso da minha guerra...
A - Quais eram as suas dúvidas em relação ao texto?
RS - Não era em relação ao texto, mas ao gosto do público, hoje as pessoas riem melhor que naquela altura. Eu não sabia se um texto non sense ia funcionar. Os cómicos têm sempre essa dúvida. Uma piada leva duas horas a ser construída e depois desaparece como um fósforo. É ao contrário dos cantores que quanto mais cantam um tema, mais ele se populariza e ganha notoriedade.
A - A estória da sua ida à guerra começou na Madeira e depois alastrou a que palcos?
RS - Mal cheguei a Lisboa fui fazer um espectáculo no ringue de patinagem de Oeiras e o êxito foi igual ao da Madeira. Na altura ia fazer a revista "Bate o Pé" e fiquei com a certeza de que a rábula não ia falhar.
A - Mas aí já tinha que submeter o texto à comissão de censura...
RS - Pois, e era uma censura visual e de texto, por isso eu tinha um grande receio que não passasse. O Nelson de Barros, grande jornalista e o maior autor de revistas que conheci, disse-me que mandávamos o texto como sendo para o personagem Cantinflas, uma rábula que tinha feito no teatro Apolo. Quando o texto veio aprovado, ninguém queria acreditar. O problema era a censura visual.
A - Como funcionava essa comissão de censura visual?
RS - No ensaio geral, cinco ou seis censores viam o espectáculo. Depois diziam que era preciso tapar um umbigo, descer umas saias, coisas assim. No Carnaval só se podia dizer merda uma vez por sessão. Como eu não ia vestido de Cantinflas, estava receoso que a rábula fosse cortada. Mas estes textos de non sense têm de ser bem compreendidos, caso contrário não funcionam. E eu disse aquilo a uma velocidade tal que nem eu próprio percebi o que dizia. Os censores também não perceberam e, no final, um deles disse-me que estava tudo aprovado mas deu-me um conselho: olhe lá, não faça aquilo da guerra, não tem piada nenhuma! E eu disse-lhe que era obrigado a fazer mas que então só fazia aquilo na estreia. Como já sabia o que vinha a seguir, pedi à Valentim de Carvalho que gravasse aquilo na estreia e lançasse o disco. Depois era impossível travar a rábula. Os censores ficaram baralhados com o Cantinflas!
A - Nessa altura já tinha grande notoriedade como actor?
RS - Nem por isso. Curiosamente, a crítica só começou a dar por mim, quando no teatro Apolo fiz a rábula do Cantinflas, em 1954.
A - Só para informação dos nossos leitores mais jovens, imitava o actor mexicano Mário Moreno, mais conhecido por Cantinflas?
RS - Exactamente. O Cantinflas era um cómico que teve êxito mundial nos anos 50 e 60.
A - Depois da sua versão da guerra continuou a fazer coisas subversivas?
RS - Sempre que pude. Em 1972, lancei "Os Malmequeres" na revista "Prá Frente Lisboa". Era uma canção altamente subversiva, oito quadras violentíssimas. A primeira era assim: "Português, ó malmequer/ em que terra foste semeado/ Português, ó malmequer/ Cada vez andas mais desfolhado". Os censores queriam que eu cortasse a palavra "português", mas se o fizesse aquilo perdia o sentido. Continuei como se nada fosse e eles ameaçaram-me. Puseram dois censores no camarote do teatro para vigiarem se eu cumpria as ordens da censura. Mas como entretanto saiu o disco, eles desistiram.
A - Vamos para o presente. Temos bons autores de humor?
RS - Sempre tivemos bons autores e bons cómicos, mas o humor é dinâmico, as coisas mudam. Andei a pesquisar rábulas antigas e constatei que o humor nos anos 40 e 50 era muito frágil. Hoje temos autores em qualidade e quantidade, a fazerem excelente humor. Eles têm outra cabeça, já não pensam como os autores do meu tempo. Dadas as condições existentes, o panorama podia ser melhor, mas é um género muito difícil.
A - Onde está a dificuldade?
RS - Eu pergunto: porque razão existem no mundo milhões de actores e só temos 50 bons cómicos? Como dizia o António Aleixo, nós precisamos de ver as coisas mais além. Está aí a dificuldade.
A - Os cómicos, para fazerem rir, têm de ver mais longe?
RS - Eu sempre disse que os cómicos são tristes e sisudos porque têm mágoas profundas. Nós temos de ver o ridículo com uma lupa muito grande e isso magoa. É por esse lado que vemos mais longe.
A - E quanto ao humor fácil?
RS - Isso não é comigo. Fui convidado para o programa "Cabaré da coxa" e perguntaram-me porque razão eu não gosto que os cómicos usem palavrões. O tipo que faz de papagaio soltou logo uma série de palavrões e ficámos todos a rir. Não foi humor fácil, foi alguém que desorganizou aquilo tudo. O cómico é um desorganizador por excelência. Mas tenho pena do público que se ri dos palavrões. Tenho imensa pena de um cómico que precisa de dizer palavrões para provocar o riso.
A - E os seus textos?
RS - Eu ao nível to texto traduzi muitas peças, escrevi "Há petróleo no Beato" e adaptei, com o César de Oliveira, "Isto é que me dói", uma peça do brasileiro Paulo Pontes que é uma crítica violentíssima ao nosso sistema de saúde.
A - E a guerra...
RS - Foi apenas uma tradução com ligeiras adaptações. Eu só interpretei essa rábula três anos e os seus ecos chegam aos dias de hoje.
A - Face ao sucesso estrondoso que teve, porque abandonou essa rábula?
RS - Um dia fui ao Barreiro fazer a guerra e o público sabia o texto de cor, os espectadores começaram a fazer de ponto. Depois chegava a outro sítio e toda a gente dizia o texto antes de mim e eu pensei que era melhor parar. Por muito dinheiro que eu ganhasse com a rábula - e se ganhei! - não queria ficar agarrado àquele boneco. Profissionalmente, fui sempre muito inquieto.
A - Está a representar no Villaret, que já foi o seu teatro...
RS - O meu sonho era ter um teatro meu, para fazer o que quisesse, nunca quis ser empresário. Investi tudo o que tinha no Villarett e perdi tudo. No 25 de Abril eu estava na Roménia e mal soube da revolução vim logo para Portugal. No Brasil estava a fazer grande sucesso a peça "Liberdade, Liberdade", do Millôr Fernandes, que é o maior humorista do mundo. Havia bichas infindáveis para ver a peça, que tinha o Paulo Autran no papel principal. Mandei vir a peça para cá. Tinha no elenco a Maria do Céu Guerra, o João Perry e o Sérgio Godinho. Aquilo batia em tudo que estivesse contra a liberdade, fossem os americanos ou os soviéticos. Havia bandeiras vermelhas por todos os lados, uma coisa muito bonita. Mas foi um fracasso tão grande que perdi tudo o que tinha e o próprio teatro...
A - Como se explica isso, num momento em que a revolução saiu à rua?
RS - A peça subiu à cena numa altura em que já se desenhava o crepúsculo da revolução. Foi a minha ruína económica.
A - E o seu novo espectáculo, também no Villarett?
RS - Está a correr bem. Os espectadores acompanham a minha memória de 50 anos de carreira. Há umas fotos que fazem de âncora da memória e depois eu digo o que me vem à cabeça. Os miúdos - vão imensos! - gostam porque não sabiam que as coisas antigamente eram assim.
A - É um tributo a si próprio por meio século de carreira artística?
RS - Este espectáculo é para percorrer o país e conhecer melhor o público. Portugal é uma maravilha, encontro pessoas fabulosas, come-se e bebe-se bem. Isto é para trabalhar mas também é para me divertir. Quero andar por aí a conhecer pessoas que tenham algo para me ensinar.
A - Mas Portugal está a passar um mau bocado...
RS - Pois está. Neste momento, se não fizéssemos parte da União Europeia, Portugal estava como o Uganda e nas próximas presidenciais era eleito um sargento para Belém. Mas a democracia portuguesa está amparada pelas estacas da União Europeia, é irreversível.
A - Mas não há demasiado ódio à liberdade?
RS - Eu tenho uma paixão imensa pela liberdade. Aliás, acho que o amor àliberdade já nasce com as pessoas e eu nasci com esse amor. Pelo que conheço dos portugueses, penso que, apesar de tudo, ainda existe uma imensa maioria que tem a paixão da liberdade e da democracia.
A - Já alguma vez esteve na política?
RS - Eu fui militante do Partido Socialista durante dois anos. A seguir ao 25 de Abril, entendi que era um dever cívico aderir a um partido e lutar pelo regime democrático. Participei em comícios de norte na sul de Portugal. Quando foi aprovada a Constituição e elegemos os deputados à Assembleia da República abandonei o partido. Penso que um actor não deve ter actividades partidárias. Antes quebrei essa regra porque a democracia assim o exigiu.
A - A crise económica não pode pôr em causa o regime democrático?
RS - Não pode, temos o dinheiro da União Europeia a proteger-nos. O fascismo é uma coisa baratucha. O ensino, a saúde, os salários, o partido único, as eleições a fingir, é tudo muito barato. A democracia fica caríssima. Nós exigimos elevados padrões na educação, na saúde, na Administração Pública, queremos salários dignos, elegemos os nossos representantes no Poder Local e na Assembleia, elegemos o presidente da República, tudo isso fica muito caro. E depois temos por aí uns senhores que adoram dinheiro, gostam de coleccionar aquela porcaria. Se não estivéssemos na União Europeia a democracia já há muito estaria em perigo.
A - E a si, como é que a crise lhe bate à porta?
RS - A mim, a crise económica não me afecta, porque nunca tive um projecto de fortuna, o meu projecto é de felicidade. E a tal paixão pela liberdade que sempre me acompanhou.
A - Como vai a Casa do Artista?
RS - É um projecto ao qual dedico grande parte do meu tempo. Agora sou o presidente da Direcção e por isso tenho de seguir de perto os seu dia a dia. Isto foi uma ideia que me assaltou desde os tempos do Brasil. Lá havia o Retiro do Artista, mas eu achava que a palavra "retiro" era muito forte e quando, em 1960, apresentei o projecto aos meus colegas, já foi como Casa Artista. A ideia andou a germinar durante muitos anos e, um dia, o Armando Cortez decidiu pô-la em prática. Durante a direcção dele eu vinha aqui todos os dias ajudá-lo. Em quatro anos mobilámos estes 12 000 metros quadrados com coisas que nos foram oferecidas! Mas quando ele começou a ficar muito doente, pediu-me para eu assumir a direcção e cá estou.
A - E apoios?
RS - Temos apoios públicos e de particulares. Isto só por si não anda. A factura de gás e electricidade é superior a mil e quinhentos contos por mês. As reformas dos 73 utentes são muito baixas, temos que encontrar apoios que, felizmente, não têm faltado. Ultimamente até temos doações de particulares em dinheiro e propriedades.
Artur Queiroz
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1 comentário:
Solnado, uma estrela de primeira grandeza!
olhe-se sob qualquer que seja o prisma: humano, artístico, espiritual tout court...
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