domingo, 22 de novembro de 2009

AVEIRO, CAPITAL JUDICIÁRIA - JORGE FERREIRA

O último artigo escrito pelo Jorge Ferreira. Realço a habitual clarividência, que manteve até ao fim, apesar da doença!

Com a devida vénia ao Diário de Aveiro



AVEIRO, CAPITAL JUDICIÁRIA

1. O PROCESSO.

Quis o sortilégio jurídico-processual do Estado que Aveiro fosse inscrita nos mapas oficiais também como capital judiciária transitória. Era a capital da Luz, era a capital da Ria, era a capital do sal, era a capital dos ovos moles, era a capital da oposição à ditadura, era a capital do debate e da polémica, agora tem mais.

E fica-lhe bem, a Aveiro, terra de ancestralidade e profundas raízes republicanas ter a oportunidade de dar um exemplo à República de combate à corrupção, que fique nos anais da história política da cidade. Ainda mais nas vésperas das comemorações do centenário da República que para o ano ocorrem.

Até agora o DIAP de Aveiro, o Tribunal do Baixo Vouga e o Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro estão de parabéns pela forma célere, eficaz, desespectacularizada e o mais sóbria que é possível, tem conduzido o diálogo do órgão de soberania Tribunais e demais autoridades judiciárias, se tem relacionado com a opinião pública. Merece especial encómio a forma segura, esclarecedora e consistente como o Juiz Presidente do Tribunal se tem dirigido à opinião pública, bem distante do pornográfico atabalhoamento dos dias de brasa da Casa Pia.

2. A CORRUPÇÃO.

Desde que se começou a perceber que não havia ninguém imune a uma perseguição a alta velocidade pelas viaturas da Polícia Judiciária, mesmo daqueles que são visitas de casa de toda a gente, muita coisa mudou. E a primeira coisa que mudou foi a atitude política das pessoas que granjearam notoriedade pública. Aquela espécie de imunidade mediática, que não jurídica, de que até então tinham beneficiado, mesmo que tivessem o cartãozinho do partido, da seita, do clube algarvio com validade 15 de Julho/15 de Agosto, terminara.
A partir do caso Casa Pia, os políticos portugueses inventaram uma frase que repetem até à náusea mas fazendo-o muito conscientemente pelo efeito de repetição que sabem vir a ter no subconsciente eleitoral do país, e que tem servido às mil maravilhas não para subverter resultados eleitorais, mas para esconder uma coisa pior: os actuais políticos portugueses não querem combater a corrupção porque sabem onde ela está, porque são cobardes e não denunciam, porque são cúmplices e também beneficiam, porque têm um desprezível conceito do bem comum, porque não têm valores, apenas interesses, porque nalguns casos têm medo e ter medo é humano (há histórias de correctivos nocturnos e alguns acidentes rodoviários estranhos nos últimos anos) e, neste caso, interesses é sinónimo de dinheiro, carteira, notas, contas bancárias, offshore.

A frase é “À Política o que é da Política, à Justiça o que é da Justiça.”

Sempre que surje uma suspeita, uma dúvida, uma diligência na Justiça, os microfones do decreto eleitoral, hoje chamados canais de televisão por cabo todos diferentes e todos iguais, fazem a ronda das sedes dos partidos e invariavelmente fazem a metódica e higiénica recolha da frasezinha fatal e indispensável para sossegar a consciência do regime. Paulo Portas, que rapinou 60000 fotocópias do gabinete, que fez ruinosos negócios de Estado com equipamento material como submarinos e helicópteros estragados, material com contrapartidas ainda por apurar, cujo partido também foi financiado pelo novo “Rei da Sucata” é useiro e vezeiro no uso desta lenga-lenga corrupteira para ver se se esquecem dele e consegue passar pelos pingos da chuva.
Ora, o que é que isto significa, tudo bem descascadinho? Significa que os jornalistas devem largar o assunto e deixar a Justiça funcionar com os inúmeros casos em curso plurianual de actividades, como submarinos, contratos, contrapartidas fantasmas de lesa-património nacional, sobreiros, Freeport de Alcochete, bancos sortidos, Oliveira e Costa, Dias Loureiro, João Rendeiro, doping no futebol de vez em quando e para variar, tanta, tanta, coisa.

Já a oposição, se tiver juizinho, deve seguir adiante e discutir política, como o índice da pobreza, os números do desemprego, a invasão dos comerciantes chineses, os incêndios no Verão e as cheias do Inverno. E é melhor que seja assim, porque há sempre dossiers novos prontos a sair para quem se portar mal. E assim tem sido.

Sugere-se, desde já, que em Aveiro se deixem de escutas e de escutinhas, por que com o fogo, os alvos e os senhores importantes que têm amigos chamados Joaquins não se pode brincar. Os magistrados do DIAP de Aveiro deveriam, sim, prosseguir as investigações e esquecer as malfadadas escutas, que apenas servem à oposição e prejudicam a governação do país.

Deixem o Primeiro-Ministro de Portugal governar. À Política o que é da Política, à Justiça o que é da Justiça.

Uma sumária leitura dos clássicos ensina-nos como todos viam o poder exercido para o bem dos outros como o exemplo do Governo virtuoso e o poder exercido para o bem próprio, como o exemplo do Governo pecaminoso. Interessava o carácter, não o botão da junta de boi que arava a terra. Agora, não. Pode ser-se um crápula e fazer um bom botão. E pode ser-se uma pessoa séria absolutamente desastrada com as maravilhas da técnica.

Permitam os leitores uma pequena incursão de memória: lembram-se da acusação feita ao Governo de José Sócrates tentar comprar a TVI antes do episódio Moura Guedes? Lembram-se que foi através de uma fuga de informação que se soube da operação? E também se lembram que Manuela Ferreira Leite, em Junho passado, disse taxativamente que José Sócrates estava a mentir quando afirmou nada saber sobre a negociata? E que não foi desmentida?

3. BATER NO FUNDO.

Esta semana trouxe-nos, enfim, o episódio final na triste sucessão de equívocos, desconfianças, suspeições, incompreensões, ordens por explicar e por cumprir, em que a Justiça desgraçadamente se transformou. Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e Fernando Pinto Monteiro, procurador-geral da República, em acesa disputa, tu cá tu lá, nas ruas, à entrada e saída de prédios, de escadas, de carros, de aeroportos, eu sei lá que mais…, debateram-se em duelo institucional deprimente sobre a melhor explicação a dar a propósito do destino final para as escutas das conversas telefónicas de José Sócrates com pelo menos um amigo, onde, alegadamente se faziam combinações sobre um “amigo Joaquim”, que alegadamente precisaria de umas coroas para um negócio que Sócrates afirmara desconhecer.

Os indícios de corrupção alargada ao mais alto nível do Estado estão aí para quem os quiser ver e escrutinar. Nos últimos trinta anos de Democracia, governos de esquerda e de direita estiveram sob a mira criminal e debaixo do escrutínio dos media. Depois dos sucessivos casos que saltaram para a ribalta pública, bem como dos sinais de alarme escarrapachados nos relatórios de organizações internacionais, o poder político continua impune e indiferente, apesar das constantes palavras vãs e mansas.

A realidade é o que é, mas ninguém pode ficar indiferente à tentativa de desvalorização da investigação criminal que continua a fazer, lentamente, um caminho infame. Em vez de responsabilizar os sucessivos governos que têm o poder de legislar e de exigir responsabilidades, aqui e ali, sobretudo quando os escândalos chegam à opinião pública, surgem imediatamente os ataques aos investigadores criminais e magistrados. Normalmente, e apesar de existirem alguns fundamentos para esta avaliação, a verdade é que quem tão selectivamente aponta o dedo a quem combate a corrupção na primeira linha não tem o mesmo critério na exigência ao governo de leis claras e atribuição de meios adequados para responder à sofisticação do crime de 'colarinho branco'. Com o desenvolvimento da operação "Face Oculta", a actualidade revelou um novo e surpreendente patamar de debate, que passa por reduzir o combate à corrupção a uma mera questão de moralização do sistema, supostamente levada a cabo por heróis imbuídos de um espírito messiânico.

Ora, o combate à corrupção começa justamente por ser um caso de política antes de poder vir a ser um caso de polícia, porque se trata justamente de saber se quem tem por obrigação escolher outros sabe escolhê-los ou se qualquer valdevinos serve. Não é uma questão de moralidade e de coragem, é um caso seriedade, de competência, de justiça social, de perseguir quem rouba o dinheiro do bolso dos outros. Que não haja qualquer confusão: há uma diferença abissal entre pugnar por mais justiça social, com mais solidariedade e menos corrupção, e pactuar, quiçá promover a gritante promiscuidade e tráfico de influências que estão na origem da corrupção.

4. AS REFORMAS.

Desde o caso Casa Pia o Portugal político assistiu a um fenómeno novo. Sempre que elementos do PS são processualmente visados em processos de investigação criminal as leis mudam. Não se percebe porquê, porque se trata muitas vezes de alterações sem paternidade assumida, cheiram a soluções cirúrgicas para vir a permitir mais tarde resolver problemas em processos concretos que já se sabem que irão surgir. Traduzem-se em propostas de lei supersónicas, apresentadas, votadas e aprovadas no Parlamento em poucos dias e que entram em vigor quase de imediato, para blindar desde logo a ordem jurídica. Foi justamente o que sucedeu com as duas últimas leis de alteração do Código de Processo Penal e do Código Penal. Mas pronto, deixemos então à Justiça…

O PS, com o apoio do PSD, que votou a favor e com o apoio do CDS, que também votou a favor, tornou-se no campeão da subversão política da ordem jurídica. Legisla-se a quente, para safar a pele de alguém e não porque se trate de uma solução-técnico-jurídica JUSTA.

5. O SEGREDO DE JUSTIÇA.

Não deve haver tema mais debatido em Portugal nas televisões, nos jornais, nas rádios, nas revistas especializadas, nas colunas dos periódicos, do que o segredo de justiça. Não deve haver norma processual penal mais violada em Portugal nos últimos anos do que o que regula o segredo de justiça. A natureza humana tem um irresistível impulso para a espreita da fechadura, subir muros de segredos. Compreender o regime jurídico do segredo de justiça em processo penal nos últimos trinta anos em Portugal deveria ser disciplina de natureza esotérica obrigatória autónoma nos cursos de Direito. O problema agora, e nasce sempre um problema quando se resolve outro, é saber o que fazer às escutas em que são apanhados titulares de altos cargos públicos. Um diz que mandou destruir, mas não foram destruídas. Outro diz que recebe certidões a pedaços. Tudo nas pantalhas do prime-time, para tristeza de que aspira a viver num país com um módico de decência e confiança nas instituições. Esta semana Portugal viveu num deplorável estado de sítio judiciário. A proposta óbvia é: congelamento legislativo até à consolidação de um quadro normativo claro, que todos percebam e saibam aplicar.

6. O FUTURO.

Não é fácil resolver o problema de desconfiança em que a Justiça se deixou colocar neste últimos anos. Proibir a legiferancia durante cinco anos para permitir a consolidação da ordem jurídica? Mudar os protagonistas, todos provenientes de corporações que se protegem umas aos outras para garantir a velha vindima duriense antes do regresso aos processos a 15 de Setembro? Fixar interpretação jurisprudencial das leis que elimine a estupefacção cidadã sobre como dois casos iguais podem ter duas soluções diferentes na decisão jurisprudencial, evoluindo, embora gradualmente para um sistema de precedente judiciário? Não sabemos. Há decisores políticos escolhidos para decidir. Que o façam e, sobretudo, que o expliquem bem para que não seja necessário dicionário.

7. O SISTEMA PARTIDÁRIO.

Está aqui o nó górdio do problema. É aqui que se começa. Uns cupões de gasolina por um favorzito na segurança social. Uma influencia no notário para uma facilidade na conservatória. Um toque no primo para um recebimento nas Finanças e por aí acima. A carreira interna vai-se fazendo. Descobrem-se contratos, notas, malas, luvas, comissões, offshore, sudokus de datas de despachos, de autorizações, de vistos, de datas, de ginásticas que podem render milhões, tudo à sombra de crescente impunidade e, assim, de irresponsabilidade.

Isto não se combate, sobretudo num país de amigos de café, de primos afastados, de família chegada sentado numa secretária à espera de uma manchete de um qualquer semanário que saia no dia seguinte, para recomeço da rambóia. Resolve-se com iniciativa e sem medo. Se com um cefalópode gigante siciliano é possível, com uma alforreca algarvia deverá bastar um mandado de busca e apreensão, desde que evidentemente a vítima seja avisada na véspera para queimar uns papéis na lareira.

O último desespero se tudo falhar: a campanha negra. A espionagem. A conspiração. Sócrates também já tentou esta. Não resulta. Quando a credibilidade se esfuma não há argumento que resista.

8. UM HOMEM DO AZAR.

Desde que Sócrates chegou ao poder que a Justiça tomou conta das suas sucessivas trapalhadas, mostrando que a carreira política do Primeiro-Ministro se construiu na base da confusão. A SOVENCO, os projectos da Cova da Beira, assinados por Sócrates mas ainda não se sabe feitos por quem, uma licenciatura fast-food, que mete fax’s ao Domingo, notas sobre trabalhos universitários risíveis, confusões na explicação do curriculum oficial sucessivamente alterado nos serviços parlamentares, esquecimentos de sócios ilustres em negócios com Felgueiras e Vara, discrepâncias em valores de compras de casas, em prédios de luxo em plena Lisboa, um ror de trapalhadas e mentirolas no processo mal cheiroso do Freeport de Alcochete longe do seu termo, e ainda mais umas coisitas Ventspils, que não tardarão a chegar por aí. Nada bate certo. Nem num simples relatório de técnicos da OCDE sobre a educação em Portugal Sócrates foi capaz de enfrentar a verdade numa tarde parlamentar, em que de uma vez só destruiu o relatório, o sítio da internet do PS e as suas próprias convicções de verdade sobre o assunto.

Rematando: agora, alegadamente, o Primeiro-Ministro é comentado no estrangeiro por ter tentado, não se sabe se sim, se não, uma cunha a um amigo administrador de um banco privado totalmente dominado pelo seu Partido para safar um amigo que por sinal até tem valido bastante no sector da comunicação social. Assim uma espécie de Berlusconni, em versão interior esquecido e marginalizado. Não me surpreendeu a simpatia indisfarçável com que Sócrates esmiuçou o inenarrável Primeiro-Ministro italiano. Bate tudo cero: uma ideia de vida, de progresso, de carreira, de “subir na vida”. E isto, caros leitores, que já não tem nada a ver com maiorias, taxas de imposto, PME’s, PEC, meio milhão de desempregados, um Estado em pré-insolvência, tudo remete para segundo plano da crise nacional mais profunda que Portugal vive desde a perda dos territórios ultramarinos. Mas isso, lá está, não interessa nada.

9. O PRESIDENTE.

Portugal tem um Presidente da República eleito por sufrágio secreto, directo e universal. Acho bem. Sou presidencialista e pela mudança de sistema. Prefiro um sistema dual Parlamento-Presidente, do que a unicefalia Primeiro-Ministro e os outros satélites. Mas o nosso Presidente não tem poder. Tem dois: preocupa-se e fala e ultimamente quanto mais fala mais se enterra. Já Jorge Sampaio também se preocupava metodicamente até que numa noite implodiu um Governo de maioria no Parlamento e lavou oito anos de coisa nenhuma. Não sei, não adivinho, não cenarizo. Apenas não acredito que venha alguma coisa dali. Sampaio ainda tem o saneamento de Armando Vara no curriculum. Cavaco nem deve ter chegar a ter tempo de mandar substituir a comandante do pelotão de formigas do Palácio.

10. E A CRISE ACABOU.

Mas podemos estar todos descansados. A crise, as preocupações de Cavaco Silva, o pandemónio judiciário, tudo acabou. Mais uma vez graças aos insuperáveis socialistas, que usam revelar uma eficácia estrondosa nestas situações limite.

Reuniu um órgão de consulta do ministro da Justiça, criado há nove anos e que não era convocado há cinco anos. Dos 22 participantes qualificados, destaque para a presença do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, e do Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro.

Ambos os conselheiros deixaram os jornalistas sem novidades sobre o caso do momento - as consequências jurídicas das escutas a comunicações entre Vara e Sócrates - recusando-se a prestar declarações. Os participantes que falaram à comunicação social foram unânimes em realçar o clima de degelo. Alberto Martins, uma espécie de ministro analgésico, igual a tantos que podiam recrutar nos escritórios das avenidas novas, não escondia a sua satisfação pelo clima de "diálogo auspicioso” do encontro. Martins, daqueles típicas figuras socialistas que não adiantam nem atrasam. Anunciou que o Conselho Consultivo poderá reunir-se de dois em dois meses, com quatro temas de fundo: eficácia e celeridade da justiça; repressão e prevenção criminal; acesso à justiça e confiança no sistema de justiça

O ministro da Justiça parece querer por cobro à situação de balcanização da justiça, que tem sido bem patenteada pelo clima de crispação, actualmente num pico devido aos efeitos colaterais do processo da Face Oculta e, sobretudo às escutas de conversas entre o banqueiro Armando Vara e o primeiro-ministro, José Sócrates.

Nesta conjuntura, Alberto Martins parece desejar inverter a situação e, depois de no sábado passado, se ter reunido, em Coimbra, com os membros da comissão que vai avaliar as mudanças à Reforma Penal de 2007 (aí vem outra reforma para o que é preciso…), abriu a reunião do Conselho Consultivo da Justiça, um órgão que existe há nove anos e estava paralisado há cinco anos.

Parecendo querer passar das palavras aos actos, Martins prepara-se para suspender os prazos judiciais entre os dias 15 a 31 de Julho, para suavizar as reservas que a alteração do regime das férias judiciais consumada pelo anterior Governo e anunciada por José Sócrates no discurso de posse, quando se iniciava uma legislatura com maioria absoluta do partido do Governo.

É, portanto, oficial: a crise acabou e este artigo de opinião fica obviamente sem efeito.

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